Construindo uma Biblioteca Acidental
Refletindo sobre clássicos, acasos, leituras passadas e futuras.
Escrever análises sobre livros é uma das coisas que mais gosto de fazer, mas ao tentar expressar meus sentimentos pela literatura em si, tive sérias dificuldades. Perdi as contas de quantas vezes tentei começar esse texto, pois não consigo chegar num consenso comigo mesma quanto a qualidade da minha expressão. Em outras palavras: Como explicar para você o quanto essa arte significa para mim? Nada que eu digo parece fazer jus ao que penso, mas como eu sempre digo, “qualquer coisa é melhor do que nada”, então fica aqui minha tentativa e vamos torcer que ela seja o suficiente. Ah, e feliz ano novo!
Bem, livros são meu meio artístico favorito porque eles são a forma mais simples e eficaz de combinar diversas áreas artísticas e existenciais: linguagem, imagem, sentido, memória, sentimento, psicologia, racionalidade, enigmas… tudo através de letras num papel. Apesar do livro possuir um formato constante e eterno para expressar artisticamente a experiência humana — através das palavras — ele possui possibilidades de conteúdo infinitas – não há limite para o que se pode dizer ou fazer através do livro.
Essa semana eu estava lendo Porque Ler os Clássicos? de Italo Calvino, e na introdução ele oferece a resposta simples - porém genial - para a pergunta-título: os clássicos não devem ser lidos porque "servem" para alguma coisa. A única razão existente é que ler os clássicos é simplesmente melhor do que não ler os clássicos. Sinceramente acho que não há mais o que acrescentar. Ler um clássico não precisa (ou não deveria precisar) de convencimento ou justificativa. O fato do livro pertencer a tal categoria é o motivo em si para mover qualquer leitor.
De uns anos pra cá tenho preferido livros que pertencem a esse grupo por mil motivos, mas talvez o principal seja porque eles pertencem ao passado, e ler para mim é como tirar férias do presente. Contudo, mesmo escapando do presente em contexto histórico, as mensagens dos clássicos são atemporais, como disse Calvino: um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.
Acredito que leituras marcantes sempre são as que encontramos por acaso, raramente quando lemos com a expectativa de sermos impactados o impacto acontece. Por isso que os chamo de biblioteca acidental, já que essa lista especial de livros foi formada a partir de uma série de encontros inocentes. Imagino que vocês queiram saber que livros são esses, pois bem: Orgulho e Preconceito, O Retrato de Dorian Gray, Eugene Onegin, O Pintassilgo, Música para Camaleões, Hamlet e Memórias do Subsolo. Estes dois últimos merecem uma contextualização, que é o que veremos a seguir.
Pensar na quantidade de livros que existem no mundo que ainda não li mas quero ler é angustiante e estimulante ao mesmo tempo. Por um lado é uma pena considerar todas as grandes histórias e personagens que não vou conhecer, por outro, que bom que tenho entretenimento e conhecimento infinitos à minha disposição. Da última vez que contei tinham 223 livros no meu quarto, e os destaques desta pequena biblioteca fazem parte dos tais clássicos, e foram amores despretensiosos. Sem saber, eu estava seguindo as instruções de Calvino:
Só nos resta inventar para cada um de nós uma biblioteca ideal de nossos clássicos; e diria que ela deveria incluir uma metade de livros que já lemos e que contaram para nós, e outra de livros que pretendemos ler e pressupomos possam vir a contar. Separando uma seção a ser preenchida pelas surpresas, as descobertas ocasionais.
Clássico não é nem sinônimo de difícil, nem de pretencioso, muito menos de chato. Esse mito equivocado é culpa das pessoas pedantes (principalmente membros da Academia) que perpetuam um tratamento brega e caduco de livros importantes para nossa cultura. Ignorem eles, e leiam mais clássicos em 2023 pelo puro e simples prazer de ler uma coisa boa de verdade.
Livro Acidental I - Memórias do Subsolo
Quando eu estava no 1o ano do ensino médio tive um professor tenebroso de redação, não só no quesito profissional, mas também no pessoal – ele gostava de ridicularizar as leituras dos alunos. À título de exemplo, ele adorava passar uma eternidade discursando (de forma condescendente e agressiva) sobre o porquê da juventude estar perdida visto que nós só líamos Harry Potter, Percy Jackson, Jogos Vorazes e Qualquer Coisa de John Green. É claro que se pode discutir certos padrões de leitura, mas existem formas e formas de falar, e essa com certeza era uma péssima generalização.
A atitude do Professor de querer inflar sua auto importância reprimindo adolescentes me deixou cada vez mais irritada, mas teve um resultado muito positivo, meio que por psicologia reversa. O Professor nos deu uma lista de livros (clássicos) selecionada por ele, cada aluno escolhia um e escrevia uma resenha, e esta seria nossa avaliação. Quando cheguei em casa, perguntei ao meu pai qual era o livro mais difícil da lista, e ele disse que provavelmente seria Memórias do Subsolo, que inclusive tínhamos em casa. Meu intuito era mostrar para esse paspalho (na força do ódio) que não era porque eu lia Harry Potter e A Culpa é das Estrelas que eu era mentalmente incapacitada, muito pelo contrário.
Pois bem, escolhi essa novela de Dostoiévski e para minha grande surpresa, achei ela a coisa mais sensacional que eu já tinha lido até então, e segue sendo um dos meus livros favoritos. Memórias do Subsolo mudou minha vida em certos aspectos, e eu tenho certeza que alterou a configuração do meu cérebro ainda em formação (talvez contribuindo para minhas crenças pessimistas e leve misantropia). Até esse momento, eu literalmente não sabia que existiam livros assim, que um livro poderia ser tão bem feito e me fazer pensar tanto. É como se eu tivesse comido bolacha água e sal a vida toda e de repente provei um pão italiano artesanal saído do forno.
O Professor cometeu uma falha gigantesca na abordagem dele, pois pelo que me lembro, a lista formulada era realmente muito boa, mas ele queria coagir os alunos a lerem ao invés de incentivar. Que esse método estava fadado ao fracasso é óbvio, mas para alguns infelizmente não é. Em todos os textos que publico no Cult Classic procuro criticar positivamente alguma obra que gosto muito, e acho que isso é bem mais eficaz na disseminação da literatura do que tentar parecer mais inteligente ao menosprezar livros populares e procurar defeitos em clássicos.
Enfim, a partir daí meu gosto literário foi mudando pois eu queria ler mais livros assim, queria pensar mais, queria qualidade. Acho que essa experiência só teve um resultado positivo comigo porque eu sou movida mais pelo despeito acadêmico do que pela validação, e porque sou naturalmente curiosa e obsessiva – hoje isso é um hobby extremamente presente no meu dia a dia, e ele começou a partir da tentativa de contradizer um Professor mesquinho.
Livro Acidental II - Hamlet
Durante a pandemia em 2020 estávamos todos presos em casa, e cheguei a um ponto em que eu não tinha mais nada para fazer a não ser ler. Por sorte, meus pais são tão acumuladores de livros quanto eu, então, numa manhã no fim de Abril, vasculhei a estante da sala e descobri que tínhamos Hamlet em nosso acervo. Pensei, “porque não? afinal é a peça mais famosa do mundo”. Mal sabia eu que uma obsessão que iria tomar conta dos próximos 3 anos (e quem sabe da minha vida acadêmica de pós-graduanda) nascia ai. Meu primeiro pensamento quando terminei de ler foi “porque eu demorei tanto para ler isso?!” mas ainda bem que esperei, se eu tivesse lido mais nova acho que não teria gostado tanto. Até o presente, eu li Hamlet 5 vezes e apresentei um seminário sobre ele na faculdade, inclusive foi isso que inspirou a criação dessa Newsletter, já que meu primeiro texto aqui foi um desdobramento do seminário.
Hamlet é, e provavelmente para sempre será, a melhor obra que eu já li. É meu livro favorito (tecnicamente não é um livro mas), e até hoje eu não consigo descrever de forma satisfatória o quanto essa peça e o próprio Shakespeare importam para mim. Eu não sei dizer como e porque essa peça me emociona tanto. Pode parecer bobo, mas eu imagino que a sensação que pessoas religiosas têm lendo um sermão é similar ao que eu sinto lendo Shakespeare: em ambos os casos se tem contato com o Sublime.
Acredito que o efeito que a poesia em geral tem em mim é o mesmo que textos religiosos tem para pessoas de fé, e tudo que Shakespeare escreve é poético. Os Sonetos me fazem chorar infalivelmente (tal qual a poesia de Wilde, Yeats e Siken). Colocar as coisas em perspectiva me deixa ainda mais emocionada, pois eu tive a felicidade de viver em uma época que esses poetas já deixaram seus trabalhos no mundo. É muita sorte estar viva pós Shakespeare. Benjamin Mcevoy disse que trata os textos do Bardo como se fossem as escrituras, e de fato eu considero ele divino em certo grau — tenho muita dificuldade de imaginar o Homem-Shakespeare, para mim ele é uma figura mítica pois é inconcebível que uma pessoa normal tenha escrito o que ele escreveu.
Eu não espero ser totalmente compreendida nesse ponto, e entendo totalmente quem leu uma peça dele e não sentiu nada disso. Por isso que eu acho que a arte só atinge sua forma final através de um colaborador: o espectador que atua como filtro ou recipiente para que a criação do autor se transforme em mensagens, sentimentos. Para mim e para determinados indivíduos Shakespeare funciona plenamente, para outros não e não há nada de errado nisso. Gostaria muito que todos pudessem sentir o que eu sinto lendo Hamlet, inclusive, acho que existe um “hamlet” para cada pessoa — basta que você tenha a sorte de encontrá-lo através dos acasos literários.
Novos Acasos - Os Clássicos de 2023
Li uma matéria recentemente no The New Yorker sobra uma escritora que até então nunca tinha ouvido falar, principalmente porque ela queimou seus próprios livros: Rosemary Tonks. Após se converter a um cristianismo radical, ela passou a ver livros como uma ameaça a santidade de sua mente, a qual só deveria ser populada pela bíblia. Esse trecho (traduzido livremente) me deixou muito pensativa e queria compartilhar com vocês:
Os relatos de sua vida sugerem que seu conflito não era necessariamente com o conteúdo, mas com o próprio conceito de escrever para os outros. Em 1999, ela observou em seu diário: "O que são livros? São mentes, mentes de Satanás. ... Os demônios ganham acesso através da mente: os livros impressos carregam, cada um, uma mente maligna: que entra em sua mente". Ela tinha medo de encontrar os pensamentos de outra pessoa deixados para trás em sua personalidade, como um cachecol desconhecido desenterrado das almofadas do sofá depois de uma festa. Os livros eram a ameaça mais aguda para a santidade do eu cercado. É claro que Tonks tem razão: é isso que a leitura faz - ela coloca a mente de outra pessoa em sua própria mente. É o mais rápido delírio metafísico que temos, impossível de replicar. A imensidão do que se sente ao ler não deve ser desconsiderada por sua onipresença em nossa vida diária. Como distinguir entre as frases que brotam e florescem de nós mesmos, o solo do indivíduo, e as frases que caem e aterrissam ali, alienígenas e já floridas?
Leitura expande o conhecimento sim, mas isso é superficial. Uma boa leitura expande muito mais do que isso, ela gera identificação, sabedoria emocional, e nos dá a base sob a qual cultivamos nossos próprios pensamentos e personalidade — prova disso é o medo que fundamentalistas, distintos pela preservação do status quo, tem do livro.
Eu disse antes que os grandes livros são encontrados por acaso, mas não custa nada planejar uma lista de grandes nomes da literatura. Para o ano de 2023 eu selecionei 25 obras que gostaria de ler, mas não me prendo tanto a elas porque eu me guio muito pelo humor, ou seja, é mais uma lista de sugestões e incentivo todo mundo a criar uma.
Todo ano que começa eu fico animada para selecionar essas novas obras, pois como disse Cervantes: “Quem lê muito e viaja muito vê muito e sabe muito”. Através dos livros eu conheço pessoas (personagens) a fundo de uma forma impraticável na vida real; eu conheço locais e épocas quase tão bem como se eu tivesse ido pessoalmente (sinto que morei na Rússia por anos depois de ler tanto Tolstói); ou seja, ler é também ganhar experiência de vida.
Falando em russos, nenhuma lista estaria completa sem a literatura desse povo tão peculiar. Em 2021 foi Anna Karenina e Crime e Castigo, em 2022 foi Guerra & Paz, e em 2023 quero conhecer as obras mais enxutas de Turguêniev e Tchekhov, com destaque para Pais e Filhos de Turguêniev.
Como sou uma pessoa que lê devagar, só consigo conciliar um livro robusto por ano, e o escolhido da vez é Middlemarch de George Eliot (finalmente!), na verdade, esse será um ano dedicado à autora visto que planejo uma grande imersão em sua obra já que tenho cinco livros dela na estante e não li nenhum ainda (rs). Eliot era uma escritora muito refinada, cujas opiniões sobre a arte e a escrita corroboram minha tese de que através da leitura é possível compreender o outro melhor, pois é como se conhecêssemos dezenas de pessoas diferentes e como elas pensam, através do personagem e suas histórias:
Se a Arte não aumenta as simpatias dos homens, não faz nada moralmente […] o único efeito que desejo ardentemente produzir com meus escritos é que aqueles que os leem sejam mais capazes de imaginar e sentir as dores e as alegrias daqueles que diferem de si mesmos em tudo, exceto no amplo fato de serem criaturas humanas que lutam e erram. — George Eliot Letters, III, pág 111
Por fim, não posso passar um ano sem ler Jane Austen! Lerei Northanger Abbey pela primeira vez e vou reler Orgulho e Preconceito depois de seis (!) anos — a serotonina que os romances dessa senhora me proporcionam é sem igual. Uma das grandes tragédias dessa vida é o fato da Austen ter morrido tão jovem, muitas vezes imaginei o que ela teria escrito depois de Persuasão, uma obra distintamente madura em comparação à outras da autora.
Me despeço do primeiro texto do ano muito feliz por ter esse espaço. Eu vejo as newsletters do substack como um remake de uma prática muito antiga: do século XIX pra trás incontáveis autores criaram suas próprias revistas para publicar seus romances seriados e ensaios, desde Dickens com o Household Words e All the Year Round à Dostoiévski com o Vremya. Quem sabe um dia o Cult Classic vai aparecer na minha biografia literária?
incrível, juuu! minha lista seria parecida, com o maior destaque possível pra dorian gray e anna karênina. ansiosa por mais experiências trocadas contigo através de futuras leituras 💛💐✨
eu odeio que se criou esse estigma com clássicos, muita gente acaba desenvolvendo um tipo de "complexo de inferioridade" que as impede de se aventurar por tanta leitura boa. não existe alguém que não gosta de clássicos, existe quem ainda não encontrou o que combine com seu estilo dentro dessas "leituras ocasionais" (ou coercitivas 😂). amei demais o texto, ju! 💌❤️