Jane Austen acha que você deveria ler mais Romances: A História da English Novel através de Northanger Abbey
"The person, be it gentleman or lady, who has not pleasure in a good novel, must be intolerably stupid" - Northanger Abbey, Ch. XIV
Existe uma crença de que para escrever bem é preciso ler muito, pois através de um repertório sólido é que o aspirante a escritor pode extrair algo seu. Devo dizer que concordo com essa afirmação (até certo ponto), pois é só pararmos para pensar em exemplos de grandes escritores que é notável a bagagem que eles possuíam. Eu particularmente adoro quando livros fazem referências a outras obras. Inclusive estou lendo (e adorando) Dubliners de James Joyce – o rei das infinitas camadas de referências e interpretações – e acho que esse charmoso irlandês é a prova de que ser um bom leitor é o primeiro passo para ser um bom escritor, ou pelo menos um escritor interessante.
Northanger Abbey é o testemunho do repertório cultural de Jane Austen, pois de todos os livros da autora este é o que mais possui referências literárias, sendo praticamente um livro sobre livros, leitores, e sobre como o que lemos é uma representação de nossa identidade. No livro há a famosa intromissão narrativa de Austen no capítulo V, que foi justamente o que me fez querer escrever esse texto: nele a autora apresenta uma defesa – com sutis notas de ironia – do Romance (com R maiúsculo significando Novel) como um gênero que merece ser respeitado tal qual a expressão artística que é, e não mero entretenimento fútil.
A necessidade de fazer essa declaração diz muito sobre o status um tanto precário do Romance na época de Austen, e fiquei me perguntando: Por que o Romance era considerado inferior? Como os Romances da época influenciaram Northanger Abbey? E qual o papel de Austen para a consolidação do Romance como um gênero respeitável, a ponto de dominar completamente o século XIX? Essas questões, dentre outras, são as que irei abordar, e convido vocês para descobrirem comigo como foi que o Romance adquiriu a importância gigante que tem hoje.
Diga-me o que lês, e te direi quem és
Desde o início do livro, Austen coloca sua narrativa ao lado de tropes, obras e conceitos literários pré-existentes, ao listar os elementos que compõem o estereótipo da heroína gótica, mas subvertendo as expectativas ao deixar bem claro que Catherine não se enquadra em nenhum deles (por mais que ela queira). Inclusive, é por isso que alguns críticos consideram o livro como uma paródia do Romance Gótico do século XVIII. Desse modo, a autora estabelece o tom atipicamente referencial de Northanger Abbey, sendo importante que o leitor tenha um certo repertório literário e cultural, mas não sendo imprescindível para compreender a história.
A nossa personagem principal, Catherine, é a clássica bookworm vivendo em devaneios sobre as histórias que consome, ao ponto de que os livros e personagens de sua biblioteca se entrelaçam com suas expectativas e concepções da realidade, principalmente porque ela é muito jovem e ingênua. Se ela estivesse no nosso século, eu diria que ela seria fã de YA Fantasy (tipo a série ACOTAR), de Taylor Swift, e Bridgerton. Não me interpretem mal: eu gosto da personagem, mas acho que não poderíamos ser amigas.
Durante a narrativa, Austen traça paralelos entre os personagens e os livros que eles leem como forma de representar quem eles são. Catherine é fã de histórias góticas fantásticas e melodramáticas, principalmente da escritora Ann Radcliffe, da qual falaremos mais à seguir. Isabella Thorpe também gosta do mesmo gênero, tanto que a amizade delas começa a partir dessa preferência mútua, mas cada uma se interessa por um aspecto diferente desses livros: Isabella se entretém com o caráter “escandaloso” ou controverso dessas obras, enquanto Catherine foca mais nos elementos de mistério, e no fantástico. Já o irmão de Isabella, Mr. Thorpe, acredita que Romances são passatempos ridículos, e um jovem cavalheiro sério como ele jamais perderia tempo com tal coisa. Em contraste, Mr. Tilney e Catherine se aproximam através dos livros — ele é uma pessoa sensata e comedida desde a primeira vez que o vemos, e agora o temos como exemplo de um homem próspero e inteligente que lê Romances e aprecia o trabalho de Radcliffe. Mr. Tilney é o típico cavalheiro culto e agradável que conhece um pouco de todas as áreas relevantes para se considerar bem educado, e por isso, colocar um personagem masculino desse tipo em defesa do Romance traz credibilidade para o argumento de Austen, considerando o contexto misógino da época. A ele se atribui a frase favorita entre os fãs de livros:
"The person, be it gentleman or lady, who has not pleasure in a good novel, must be intolerably stupid"
“A pessoa, seja cavalheiro ou dama, que não tem prazer em um bom Romance, deve ser intoleravelmente estúpida”
A partir deste espelhamento entre personagem e leitura, pode-se dizer que Austen estabelece o hábito de ler como um importante indicativo de caráter, e a literatura que o indivíduo consome tanto serve como extensão de quem ele é, como também alimenta sua personalidade. Portanto, a jornada de amadurecimento pessoal de Catherine coincide com sua maturidade como leitora: importante destacar que ela continua lendo os Romances góticos que tanto gosta, mas ela eventualmente amplia seu leque para outros tipos. Por fim, ela aprende a ter mais nuance e sensibilidade para separar a fantasia da realidade, construindo essa singela sabedoria a partir de um incidente vergonhoso diante do rapaz que ela ama. Desse modo, o que Austen diz é que a imaturidade da leitora não é culpa do que ela lê, mas sim uma questão própria devida à sua inexperiência
Quanto ao romance (com r minúsculo no sentido amoroso), achei o relacionamento entre Catherine e Henry o mais sem graça do cânone austeniano. De qualquer forma, acho que o objetivo do livro nem é esse — diferente de Pride & Prejudice e Persuasion — e Henry é um querido, apesar de insosso. O ponto forte de Northanger Abbey se encontra, na minha opinião, na exposição da realidade sociocultural da virada do século XVIII para o XIX, visto que Austen faz mais “intromissões” narrativas aqui do que em qualquer outra obra dela. É possível perceber, através de comentários tanto dos personagens quanto da narração, o status do Romance no meio cultural burguês e aristocrático, bem como o caminho pelo qual a literatura estava seguindo, culminando na idade de ouro do Romance na era Vitoriana, o que para mim é interessantíssimo. Apesar de Northanger Abbey não ter entrado no meu top 3 da Jane Austen, ainda assim gostei muito.
O Romance no séc. XVIII
O século XVIII testemunhou a ascensão do Romance de ficção, mas ia demorar até o início do século seguinte para ele se estabelecer como um formato respeitável e influente. Tenha em mente, caro leitor, que tudo o que eu gostaria de dizer sobre “o romance no séc. XVIII” daria uma monografia inteira, então aviso aos nerds de plantão que estarei deixando várias coisas de fora, no intuito de fazer uma contextualização concisa e bacana do momento em que Northanger Abbey foi concebido.
I. O Status do Romance
Na época da composição de Northanger Abbey, o Romance ainda não tinha a credibilidade que tem hoje. Tal qual Mr. Thorpe, boa parte da opinião pública via o Romance com maus olhos, como se vê nesse trecho do ensaio de 1798 On the Reading of Novels:
“[a maioria dos romances] têm a tendência de enganar a mente, de enfraquecer o coração, de representar a natureza em cores impróprias, de excitar, em vez de suprimir, nos jovens e ardentes, noções românticas de amor, e de conduzir os incautos em meio aos labirintos sinuosos de intriga e aos campos floridos de dissipação. […] As mulheres, em geral, são as mais inclinadas a folheá-los, e por uma desatenção fatal à sua educação, elas são mais propensas a cair vítimas de suas insinuações banais”
tradução livre
Esta opinião era tão difundida no final do século XVIII que se tornou um clichê. Tanto que, no final do Capítulo V de Northanger Abbey, Austen formula uma defesa do Romance, seus leitores e escritores. Basicamente ela diz que o trabalho do romancista deve ser valorizado e apreciado, que os romancistas precisam se unir e defender seus trabalhos dos críticos, e que as pessoas devem ler mais Romances. Na hora que li isso fiquei impressionada, pois nunca antes tinha visto Austen se dirigir tão diretamente ao leitor, e defender um ponto de vista de forma tão mordaz:
“Parece haver quase um desejo geral de desconsiderar a capacidade e subestimar o trabalho do romancista, e de amenizar as performances que têm somente genialidade, sagacidade e bom gosto para recomendá-las. [...] ‘Oh, é apenas um Romance’ responde a jovem; enquanto ela lança seu livro com indiferença afetada, ou vergonha momentânea. ‘É apenas Cecília, ou Camila ou Belinda*’, ou, em suma, apenas algumas obras nas quais são exibidos os maiores poderes da mente, nas quais o mais profundo conhecimento da natureza humana, a mais feliz delineação de suas variedades, as mais vivas efusões de inteligência e humor são transmitidos ao mundo na melhor escolha de linguagem.”
*Cecília, Camila e Belinda são Romances de Frances Burney
Northanger Abbey, Ch. V, tradução livre.
Outra defesa famosa foi feita pelo grande autor e crítico Samuel Johnson no Rambler No. 4 (1750). Nele, Johnson reconhece o poder de influência que o Romance possui, principalmente nas mentes jovens e inexperientes que observando o comportamento do herói da história para regular suas próprias práticas — tal qual a de Catherine. Por isso, ele argumenta que existe uma certa responsabilidade do autor em escolher com cuidado o objeto de sua narrativa e como ele será apresentado:
“A principal vantagem que estas ficções têm sobre a vida real é que seus autores têm a liberdade de não inventar, mas de selecionar objetos, e de separar da massa da humanidade aqueles indivíduos sobre os quais a atenção deveria ser mais empregada; como um diamante, ainda que não possa ser feito, pode ser polido pela arte, e colocado em tal situação de modo a exibir aquele brilho que antes era enterrado entre pedras comuns.
É justamente considerado como a maior excelência da arte a imitação da natureza; mas é necessário distinguir aquelas partes da natureza que são mais apropriadas para a imitação: ainda é necessário um maior cuidado na representação da vida, que é tão frequentemente descolorida pela paixão, ou deformada pela maldade. Se o mundo é descrito de forma promíscua, não vejo que utilidade pode ter a leitura do relato”
Samuel Johnson - Rambler No. 4 — tradução livre
Observa-se o peso que Johnson dá ao ofício de retratar a realidade, como algo que pode “desvirtuar” um indivíduo pouco experiente. Interessante ele dizer que essa nova prática narrativa “seleciona” objetos ao invés de inventá-los, já que o objetivo seria buscar uma verdade real. De fato, o poder de convencimento moral de uma experiência similar ao contexto do leitor é muito maior do que uma fábula bíblica, tão distante e fantasiosa ela parece perto dos eventos de homens e mulheres comuns. Inclusive, de acordo com o professor Ian Watt, os historiadores do romance consideram o “realismo” como a diferença essencial entre o Romance do início do séc. XVIII e a ficção anterior.
Outro argumento a favor do Romance foi feito por Clara Reeve em The Progress of Romance (1785). A pesquisadora Marilyn Butler afirma que, baseando-se no texto de Reeve, a reputação do romance foi aumentada pela atribuição de descendência do romance medieval e clássico (como Pantagruel e Tristão e Isolda), e portanto uma história que volta até os gregos. Reeve apresenta alguns pontos feministas, como o fato de que mulheres possuem seus próprios gêneros literários ancestrais, capitalizando a associação tanto do romance quanto do romance com escritoras e leitoras, em vez de pedir desculpas por isso. Argumenta também que a história épica e formal são, ao contrário, os gêneros ultrapassados das culturas arcaicas e militaristas. O leitor moderno é tipicamente uma pessoa doméstica - e assim, é insinuado, uma mulher.
A categorização do Romance como algo “de mulher” contribuía para o baixo status que detinha, afinal, autoras como Maria Edgeworth, Ann Radcliffe, Fraces Burney e a própria Clara Reeve escreviam histórias mais apelativas para o público feminino: conflitos domésticos e sociais em salons e cozinhas, e os perigos da inserção da jovem mulher no mundo através de metáforas góticas, experiências que elas viveram e assim poderiam transmitir com propriedade. Não desconsiderando autores como Samuel Richardson que escreveu sobre temas similares, mas a diferença entre a experiência feminina vivida e uma observação parcial masculina é gritante.
Austen, em sua juvenília, escreve como se perguntasse para que escrevemos Romances, e ela mesma responde escrevendo para criticar e aperfeiçoar a forma. Seus primeiros Romances, segundo a pesquisadora Rachel M. Brownstein, são todos brilhantemente conscientes de si mesmos como Romances — ficções domésticas centradas na heroína de um tipo que se tornou popular na esteira de Pamela (1742 ) e Clarissa (1747-8) de Richardson. Quando ela começou a escrever, o gênero já havia sido amplamente criticado por razões morais e estéticas.
II. A Individualidade Moderna: uma mudança de valores
O Romance, segundo Ian Watt, ao se basear na experiência individual, que por excelência é única e portanto nova, se mostra o veículo literário lógico de uma cultura que nos últimos séculos foi gradativamente se individualizando. O enredo agora envolveria pessoas específicas em circunstâncias comuns, e não, como fora comum no passado, tipos humanos genéricos em situações determinadas pela convenção literária adequada. Paradoxalmente, ao abandonar arquétipos, os autore criaram personagens mais reais, estimulando a identificação (relatability) e empatia do leitor, fortalecendo assim a conexão entre público e obra. Desse modo, observa-se que a grande mudança intelectual e social foi a partir da substituição da tradição coletiva pela experiência individual, como meio para conhecer e traduzir a verdadeira experiência humana.
É claro que a vida comum sempre fez parte das representações narrativas no mundo pré-Romance desde a antiguidade clássica, mas o comum sempre foi secundário e subordinado numa hierarquia literária e moral aos mundos do épico e da novela medieval, um coadjuvante cômico ao reino ideal retratado em formas de representação consideradas mais elevadas e nobres.
Essa mudança conceitual literária não veio do nada: ela é um reflexo das profundas transformações socioculturais ocorridas principalmente a partir do pensamento iluminista. A maioria dos leitores e escritores dos séculos anteriores não teriam compartilhado a noção essencialmente secular e materialista da linha de pensamento iluminista e racionalista para separar o factual do ficcional, o provável ou possível do romântico e do irreal. Assim, a ascensão do Romance britânico ocorreu através da rejeição, modificação, e confronto polêmico das formas passadas.
III. O Público Leitor e a Revolução no Mercado Editorial
Antes do século XVIII, a educação e a alfabetização eram geralmente restritas aos homens nobres, clérigos, ou que tivessem uma profissão que necessitasse ler e escrever. Na Inglaterra, a mudança de costumes domésticos e novos padrões sociais impactaram diretamente o público leitor, que só fazia aumentar: a ascensão da burguesia proporcionou que mais pessoas tivessem acesso à educação, aumentando taxa de alfabetização na Inglaterra, a qual nos anos 1640 era de cerca de 30% para os homens, subindo para 60% em meados do século XVIII. Para mulheres, em 1714 a taxa subiu para 25%, e subiu novamente para 40% em 1750. Mais leitores significa maior demanda por livros!
Gradualmente o mercado editorial foi crescendo no decorrer do século, já que livros tratando de temas seculares estavam agora disponíveis como uma mercadoria oferecida a um grupo cada vez maior (embora ainda muito pequeno pelos padrões modernos) de consumidores alfabetizados. Em vez de um luxo acessível apenas aos privilegiados e instruídos, os livros e especialmente os Romances fizeram parte da revolução na oferta de bens de consumo, mudando a vida cotidiana de grande parte da população na Grã-Bretanha.
Além do aumento da alfabetização, as mudanças economicas causadas pela revolução industrial também impactaram fortemente a ampliação do mercado literário, pois agora fazer livros era mais rápido, fácil e barato. Com isso, surgem as bibliotecas itinerantes: em troca de uma assinatura barata, os leitores poderiam pegar emprestado um certo número de volumes de uma vez. No final do século, até pequenas cidades provinciais tinham bibliotecas do tipo. Isso foi crucial para disseminação do Romance pois até então o livro era um item de luxo. Nesse contexto, as mulheres passaram a compor cada vez mais o público leitor, pelo simples fato de que a vida delas era restrita ao lar, e o Romance agora era um passatempo acessível. Assim, leitoras passaram a ser escritoras, provando que há complexidade e interesse na realidade constrita e mundana das mulheres de classe média e da pequena aristocracia.
Românticos e Góticos: As influências de Northanger Abbey
Para quem lembra das aulas do colégio, deve saber que enquanto na filosofia o Iluminismo estava em alta, na literatura o Romantismo era a moda da vez, e dentro dessa “Age of Sensation”, no final do século XVIII, um subgênero que pretendia reviver antigas histórias e crenças se estabeleceu como o Romance Gótico.
No tópico anterior falamos sobre a obsessão iluminista com o racional e a verdade, e como isso impactou a narrativa realista. Porém, nem todos estavam de acodo com essa filosofia. O chamado “Romance Sentimental” (e seus derivados) surge como uma celebração da virtude privada e doméstica, da melancolia e das paixões, sendo um contraponto equilibrado do racionalismo. Há um intenso foco na subjetividade dos personagens, mesmo que esses romances abordem as limitações (e os perigos morais) do individualismo e apresentem personagens que muitas vezes anseiam por um significado ou propósito que é mais do que meramente pessoal ou egoísta.
Nesse contexto, Romances sobre o cortejo (courtship novels) e o casamento de uma jovem mulher, cruciais para a revolução cultural do Romantismo, antes deliberadamente didáticos, buscando estabelecer padrões de moralidade e comportamento em um mundo socialmente restringido, agora são mais profundos e complexos ao retratar essa experiência. O que muda a partir de romancistas como Frances Burney, muito mencionada em Northanger Abbey, é a abordagem da subjetividade feminina, da evolução do caráter e da construção de valores e um senso de identidade da mulher, a colocando como um personagem psicologicamente interessante.
Austen deu um passo além, empregando sua ironia avassaladora para representar o cortejo e o mercado matrimonial para mulheres cujo status econômico as tornou menos desejáveis (todas as suas personagens sofrem disso, exceto Emma). As representações de Burney sobre este período crítico na vida de uma mulher são menos analíticas do que as de nossa autora em questão.
A romancista mais citada (e parodiada) em Northanger Abbey é Ann Radcliffe, autora favorita da nossa Catherine, e um expoente importante do Gótico. A maioria dos estudiosos considera a ascensão do Romance Gótico em 1764 com a publicação de The Castle of Otranto, de Horace Walpole. Continuando nessa tradição temos The Old English Baron (1778), no qual Clara Reeve situa seu trabalho na esteira iniciada por Walpole. Nos anos 1790, quando Austen começa a compor Northanger, o Romance gótico torna-se a principal forma de ficção em inglês, com a publicação de The Monk de Matthew Lewis (1796), Caleb Williams de William Godwin (1794) e cinco romances de Ann Radcliffe (1789-97). Depois de Mary Shelley e Charles Robert Maturin, o Romance gótico declina, ou passa por transformações em gêneros como histórias de fantasmas, contos de vampiros, romances de sensações, romances históricos e ficção policial.
O gótico romântico foi muitas vezes descartado pela Academia como um subgênero de ficção sensacionalista deliberadamente destinado a um público leitor semi-educado. De fato, a Minerva Press de William Lane (fundada em 1790), que publicou os Horrid Mysteries na lista da biblioteca de Isabella (I, vi), foi de fato lançada especificamente para apelar para as mulheres de classe média-baixa. Contudo, os principais Romances góticos de Radcliffe não foram colocados de forma alguma por contemporâneos na mesma categoria. Austen reconheceu, assim como Scott, Coleridge, Godwin, Byron e Shelley, que Radcliffe tinha aberto um gênero de ficção profundamente imaginativo e intelectualmente ambicioso.
Radcliffe, em seus Romances, simultaneamente fascina e fornece orientação moral para o leitor, embora fascine mais pela escuridão do que pela luz. A estética do século XVIII é caracterizada pela apreciação de paisagens sublimes, ruínas, elegias de cemitério e arquitetura e literatura gótica. Especificamente na ficção gótica feminina, a tendência é retratar o abuso de poder pelos patriarcas tirânicos e sua exploração das mulheres, e segundo o professor James P. Carson, é melhor entendida como um subgênero dentro do Sentimental Novel, pois ele explora o sofrimento das mulheres jovens perseguidas. Dito de outra forma, o gótico feminino se concentra intensamente na violação daqueles ideais de sociabilidade e de relações racionais que o Iluminismo prezava e promovia. Desse modo, de uma forma alegórica ou metafórica, o Romance de Radcliffe traça diversos comentários sociais, além de construir uma forte exploração psicológica (mesmo que exagerada).
Ambas autoras representam subgêneros literários diferentes, igualmente importantes para a composição de Northanger, seja no lado satírico ou de reprodução de tropes. Tanto os Romances de Burney quanto os de Radcliffe citados por Austen representam, de formas diferentes, a difícil inserção de uma jovem no mundo dos adultos, uma questão urgente na vida e contexto da jovem Austen.
A Revolução Austeniana
O iluminismo também trouxe a questão do dualismo filosófico, o qual contrapôs o mundo interior com o exterior, influenciando, é claro, a literatura: como conciliar a consciência subjetiva do personagem com o relato objetivo característico do realismo? A plena maturidade do Romance só se tornou possível com a conciliação desses polos, e segundo Watt, Jane Austen merece lugar de destaque por ter arquitetado uma feliz união dessas esferas a princípio opostas, mas de fato complementares.
Além das autoras mencionadas no tópico anterior, Austen também se inspirou no Samuel Richardson dos conflitos domésticos, cujo exemplo máximo é no livro Sir Charles Grandison (1753), para construir minunciosamente seu microcosmo cotidiano da gentry. Também se inspirou em Fielding com relação à narração, ao adotar uma postura mais impessoal, avaliando seu objeto narrativo a partir de uma perspectiva cômica, irônica e realista. O resultado esplêndido dessa combinação é prova da genialidade técnica de Austen. O narrador personagem relatando seu memoir foi dispensado, assim a autora não se intromete na história, e demonstra uma enorme compreensão social e psicológica. Mesmo que ela destaque a consciência de suas heroínas, ela deixa espaço para que o leitor não perca a percepção crítica do romance como um todo.
Nesse período de transição no séc. XVIII as mulheres desempenhavam um papel cada vez mais importante na vida literária. Watt argumenta que, sob certos aspectos, a sensibilidade feminina estava mais bem qualificada para revelar as complexidades das relações pessoais, e assim detinha uma posição vantajosa no campo do romance. Esse argumento tem lógica, se considerarmos que a educação social que as mulheres de classe média e alta recebiam as preparavam para lidar com temperamentos diferentes e realizar gerências sociais, seja cuidando dos filhos, administrando dezenas de funcionários domésticos, regendo uma sala de estar ou uma festa, ou dando atenção para o marido e familiares — seja como for, ela era uma grande administradora social, querendo ou não, e por isso precisava saber lidar com muita gente da forma mais harmoniosa possível. Para uma mente criativa e pré-disposta ao storytelling, é natural pensar que uma escritora mulher tivesse um senso de observação humana mais aguçado, já que orbgatoriamente ela estava restrita ao ambiente doméstico, observando as pessoas de perto.
Ao meu ver, Austen — como observadora espetacular — combinou diversas tendências e tradições de sua época e sociedade, e através de uma técnica simples e elegante, conseguiu dar vida aos personagens extremamente queridos e inesquecíveis. Ao fazermos uma leitura cautelosa, vemos que ninguém soube capturar a realidade sociocultural comum com tamanha precisão e sutileza. Se o leitor prestar atenção ele consegue extrair mais informações sobre os costumes da Era Georgiana do que em livros de história. Cada detalhe que Austen escolhe tem um propósito e uma “denúncia” em Northanger Abbey, como nas preferências literárias dos quatro personagens centrais, ou nas opiniões imobiliárias do Coronel Tilney que refletem sua ambição e avareza, ou ainda na discussão sobre se é melhor carruagens abertas ou fechadas: por trás há uma discussão sobre costumes impróprios.
No início do séc. XIX quando Austen começou a publicar, a realidade já era outra. O Romance finalmente estava numa posição mais confortável, após persistir para se estabelecer, mesmo que ainda fosse demorar mais algumas décadas para dominar de verdade o mercado e cultura da Grã-Bretanha. Somando isso com a alta qualidade inerente dos livros de Austen, é de se esperar que ela contribuísse muito para a credibilidade do Romance, principalmente porque autores contemporâneos conceituados reconheciam sua maestria. O grande Sir Walter Scott disse que o trabalho de Austen possuia “a arte de copiar da natureza como ela realmente existe nas caminhadas comuns da vida, e apresentar ao leitor, ao invés das esplêndidas cenas de um mundo imaginário, uma representação correta e marcante daquilo que acontece diariamente ao seu redor.”
De grande importância é o fato de que a opinião de Scott não é isolada. Richard Whatly notou o mesmo em 1821:
Os tempos parecem ter passado quando era necessário um pedido de desculpas dos revisores por se condescenderem para notar um Romance; quando eles se sentiam obrigados pela dignidade a depreciar a suspeita de prestar muita atenção a tais trivialidades. As delícias da ficção são pelo menos mais prontamente reconhecidas pelos homens de bom senso e gosto.
Uma das coisas que Jane Austen me ensinou foi que existe valor em retratar o mundano. Afinal, eu diria que apenas 1% de nossas vidas normais poderão ser consideradas extraordinárias. E o enorme resto? Desprezar o cotidiano seria dizer que o nosso dia a dia não vale a pena ser vivido, ou que não pode ser admirado. Esta é a revolução que a autora trouxe com seus Romances de Costumes. Austen mostra que existe beleza no caminho que fazemos todos os dias em direção à um compromisso, que o amor entre pessoas comuns é mais emocionante que o amor entre princesas e piratas. Ela mostra a importância de criar uma comunidade forte, afinal ninguém vive sozinho, mas parece que cada vez mais a gente esquece disso. No fim da história, Catherine amadurece como leitora e como indivíduo, reformulando suas expectativas fantasioas através do desenvolvimento do bom senso, aprendendo a lidar e apreciar a realidade — concluindo com uma clássica mensagem austeniana: a felicidade está numa sala de estar cercada daqueles que amamos.
lindo texto, Ju! perfect <3
eu amei tanto, principalmente o final 🥺 tendo a amar coisas que são trabalhadas na subjetividade e sutileza, nos detalhes e nuances das relações humanas. e jane austen faz tudo isso sem pesar no tema, deixa a gente fanficar enquanto reflete seriamente kkkkkkkk muito bom, ju!