O Natal e seus Clichês Adoráveis: Relendo “A Christimas Carol” de Charles Dickens
Clichês não matam ninguém, feliz natal!
“Mas porque amar tanto o natal?” foi a pergunta que meu pai me fez essa semana (ou algo parecido) e a única resposta que eu tenho é “porque não?”. Dezembro é o único mês do ano no qual não tolero cinismos. Não sou religiosa nem nada do tipo, mas aprecio muito os aspectos seculares do feriado. A esse ponto do séc. XXI acredito que todos saibam das origens pagãs do Natal, então não vou explicá-las e acho que nem vem ao caso.
Porque gosto tanto do Natal então? Infelizmente não sou capaz de oferecer uma resposta concreta, lógica e objetiva, pois o meu gostar é completamente baseado em sentimentos nostálgicos: quando criança eu acreditava fervorosamente no Papai Noel (lembro distintamente de achar ele mais plausível que Jesus Cristo, para o alarme dos meus colegas de colégio católico). Adoro encontrar a família, além de amar clichês natalinos quando eles são usados para o bem. O feriado, pra mim pelo menos, possui uma atmosfera de alívio e de melancolia (o ano está acabando...!), somado a um bom humor generalizado, graças aos melhores piores filmes onde tudo se resolve com “a magia do natal”, e à histórias que pareceram nascidas junto com o feriado, tal qual A Christmas Carol de Charles Dickens.
Certamente reconheço o viés capitalista que o Natal possui, mas nesse sentido minha abordagem é bem prática: a hipocrisia comercial do mundo ocidental não é um problema que eu possa resolver, então me restam duas opções — ir na onda e curtir o clima natalino mas sem esquecer esse aspecto, ou me comportar tal qual o Scrooge (ou o Grinch!). Bem, para mim o Natal representa uma oportunidade alcançável de prazeres simples. Adoro os filmes, livros e principalmente as músicas de Natal (de Frank Sinatra a Phoebe Bridgers).
Desde o dia 1 de dezembro venho pensando no que eu iria dizer aqui sobre A Christmas Carol que já não tenha sido escrito mil vezes. Até que me lembrei de algo que sempre digo para encorajar amigos escritores: se não foi você quem disse então ainda não foi dito. Por isso, aqui vão minhas impressões sobre A Christmas Carol, algumas curiosidade sobre o Natal Vitoriano, e o meu feliz natal!
O Natal Vitoriano: Contextualizando a Publicação do Conto
É costumeiro dizer que os vitorianos ou até mesmo Dickens inventaram o Natal, mas essa ideia é um pouco equivocada. O que podemos afirmar é: durante o reinado de Victoria, foram popularizadas várias práticas natalinas que permanecem na cultura ocidental ainda hoje, e boa parte desses costumes foram capturados por Dickens em suas publicações anuais de natal. Por isso, é comum simplificar os fatos e atribuir o natal que temos hoje como invenção da Rainha Victoria e de Dickens.
O Natal "tradicional" britânico que conhecemos hoje se desenvolveu como um produto da industrialização — processo que marcou a Era Vitoriana. Isso não quer dizer que as celebrações de Natal não existiam antes do século XIX, nem mesmo que o feriado não fosse um feriado de consumo, mas apenas que, até a industrialização e o mercado de massa, praticamente só se consumia comida e bebida.
Falando em industrialização, a década de 1840 foi extremamente difícil para a população trabalhadora da Grã-Bretanha, tanto que a época foi apelidada de “the hungry forties” (os famintos anos 40). No incício do século XIX, mal existiam leis que protegessem os operários de fábricas que trabalhavam de 12 a 16 horas por dia em condições insalubres, a pobreza e a desigualdade em Londres só crescia, e A Lei dos Pobres de 1834 estabeleceu as workhouses — um depósito de pessoas em situação de extrema pobreza que forneciam tratamentos horriveis. Tudo isso estava na mente de Dickens ao escrever o conto em 1843, e seu ativismo é perceptível na moral da história. Mas falaremos sobre isso em detalhes mais a frente.
Em A Christmas Dinner’ contido no Sketches by Boz e publicado em 1836, Dickens apresentou um natal áustero: o dia era sobre a família, sobre ir à igreja e caridade, e sobre comida - peru, pudim de ameixa e mince-pie. Muitas das coisas que consideramos essenciais do Natal ainda não faziam parte do feriado. Ele não mencionou árvores, canções, cartões, meias ou renas. Não havia Papai Noel, nem presentes (exceto aqueles dados aos criados, e lembrancinhas para as crianças). Dickens estava à beira das grandes mudanças que estavam por vir, e quando ele começou a escrever, muitas das tradições para esta festa tradicional estavam evoluindo, e novas práticas estavam sendo criadas: em 1837 a Rainha Victoria subiria ao trono e alguns costumes natalinos iriam mudar.
Antes de tudo, é preciso ter em mente que o jovem casal real era o maior ditador de tendências na época. Embora o Príncipe Albert não fosse pessoalmente responsável por trazer a árvore festiva para a Grã-Bretanha, tendo sido introduzida pela rainha Charlotte no século XVIII, essa ilustração das crianças reais aproveitando o feriado com seus pais e avó foi muito influente na promoção do Natal como conhecemos hoje. No final da década de 1840, ela havia se tornado a festa central do calendário vitoriano: “uma época de celebração e fortalecimento dos laços familiares, de caridade cristã, generosa hospitalidade e boa vontade para com os outros” de acordo com a revista. O costume alemão de trazer uma árvore para dentro da casa e decorá-la com velas e presentes foi celebrado com entusiasmo por Victoria e Albert. Em Windsor, eles se divertiam em preparar árvores um para o outro, assim como para as crianças e para a Royal House, e regularmente presenteavam árvores para escolas e quartéis do exército.
Pouco depois da chegada da árvore de Natal ao palácio britânico, Dickens, com A Christmas Carol, institucionalizou o que se conhece hoje como “espírito de Natal” — tão falado em filmes natalinos. Dickens colocou como legenda de sua história “A Ghost Story for Christmas”: Uma História de Fantasma para o Natal.
O Fantasma de uma Ideia
Publicado em 19 de dezembro de 1843 por Chapman & Hall com ilustrações de John Leech, quando Dickens tinha 31 anos, A Christmas Carol foi um sucesso imediato, ficando esgotado nas prateleiras em uma semana. O que foi uma noticia maravilhosa para o autor, visto que seus romances prévios (Barnaby Rudge e Martin Chuzzlewit, este ultimo ainda estava em publicação semanal em dezembro de 1843) não tinham ido muito bem nas vendas.
Dickens sempre foi um escritor muito engajado no contexto social de sua época, afinal ele não teve uma infância fácil e trabalhou como jornalista antes de migrar para a ficção, e ao escrever o conto ele buscou refletir questões como desigualdade, más condições trabalhistas, a falta de ética capitalista, e a realidade das pessoas pobres em Londres, mas falarei em mais detalhes sobre isso no tópico seguinte.
Mortalidade é uma ótima lente para avaliar como estamos vivendo, e o conto possui essa aura sinistra: o livro abre estabelecendo que esta história só é fantástica porque Marley estava definitivamente morto mas reaparece posteriormente. Era costumeiro que durante o Natal na Era Vitoriana se contassem histórias de fantasmas, tanto que, no prefácio Dickens diz o seguinte:
“Tentei neste fantasmagórico livrinho expor o Fantasma de uma Ideia, que não há de fazer com que seus leitores fiquem de mau humor consigo mesmos, uns com os outros, com a época do ano ou comigo”
O fantasma de Marley a princípio ressurge para alertar Scrooge da vinda dos três fantasmas do Natal. Contudo, ele possui uma tarefa mais simbólica: ele volta para servir de exemplo do que não fazer. “A sabedoria de nossos antepassados se encontra nos símiles” — aqui Dickens destaca o poder da memória: aqueles que se foram permanecem em exemplos, costumes, linguagens, e se perpetuam através da continuidade das ações dos vivos. Nesse caso, as más práticas do sócio de Scrooge continuaram após sua morte, e agora elas servirão de presságio para ele. Todo personagem que embarca em uma jornada narrativa deve sofrer alguma mudança no percurso, e o catalisador de tal mudança em A Christmas Carol são os fantasmas que personificam os mortos, passado, presente e futuro (uma crise existencial completa eu diria). Essa ideia de reavaliar o comportamento através de exemplos como o de Marley é especialmente eficaz se proposto no contexto de fim do ano, pois é fácil inspirar pessoas já propensas a criarem suas resoluções de ano novo. “new year new me”.
Scrooge pode influenciar o futuro se ele reconsiderar o passado e mudar o presente. Durante as estrófes, Scrooge é visitado pelos Fantasmas do Natal Passado, Presente, e Futuro, cada um deles fornecendo uma reflexão e catarse para o velho avarento. Atravpes destes episódios, Dickens aborda uma ampla lista de temas sociais e filosóficos pertinentes para o contexto que vivia (e que não deixam de ser relevantes hoje). Scrooge é levado a confrontar “as correntes que fez em vida” e nenhuma delas positiva: aqui a mortalidade é usada para alertar sobre o que construímos nessa vida que será levada ou não para a próxima. Após a investigação introspectiva, Scrooge precisa enfrentar a realidade trágica da miséria de sua nação e reconhecer sua parcela de responsabilidade. No fim, Scrooge precisa olhar para quem ele era e torcer que ele não seja mais essa pessoa, para que o futuro seja diferente. Não é uma tarefa fácil.
O Ativismo de Dickens
No primeiro capítulo do conto, Scrooge é abordado por dois cavalheiros na véspera de Natal, que lhe pedem doações para os pobres. Neste diálogo, Scrooge pergunta à eles se não há mais prisões e asilos da União (workhouses), e se por acaso a Lei de Treadmill e a Lei dos Pobres não estava mais em vigor, e um deles responde afirmativamente para as perguntas. Ele insiste para Scrooge que ainda assim os pobres precisam de ajuda, ao que Scrooge responde:
— Eu não fico feliz no Natal e não posso empenhar-me em fazer com que gente preguiçosa fique feliz. Ajudo a defender os estabelecimentos que mencionei há pouco; já é um preço alto; e aqueles que não se dão bem fora deles podem ir para lá.
— Muitos não podem fazer isso; e muitos prefeririam morrer. [a ir para as prisões ou workhouses]
— Se preferem morrer — disse Scrooge —, morram e diminuam o excesso de população.
Essa cena é relevante pois ilustra uma parcela da sociedade que Dickens procurava denunciar, e na narrativa é algo que será usado contra Scrooge posteriormente.
Em 1843, Dickens ficou horrorizado ao ler um relatório do governo. Era o The Parliamentary Commission on the Employment of Women and Children (Comissão Parlamentar sobre o Emprego de Mulheres e Crianças), mostrando as condições horríveis sob as quais crianças muito pequenas eram obrigadas a trabalhar debaixo da terra ou a trabalhar horas terrivelmente longas em condições abismais nas fábricas. Dickens leu o relatório e descreveu a si mesmo como sendo “perfeitamente atingido por isto” e determinou que iria reagir com “o golpe mais pesado em meu poder” em nome destas vítimas da Revolução Industrial e, em outubro de 1843, ele estava dando uma palestra em Manchester — uma das cidades mais industrializadas da Inglaterra.
Os anos 1840 não eram apenas “famintos”, mas misantropos de certa forma. Era uma filosofia encarnada em Ebenezer Scrooge — não era apenas um personagem avarento solitário (como, por exemplo, Silas Marner de George Eliot), mas a representação do “espírito da época” em forma humana (e, sem dúvida, desumana). “Cabeças duras, corações duros, bons negócios. Cabeças macias e corações macios levam ao tribunal de falências”, teria dito Scrooge. Dickens discordou.
As crianças trabalhavam como escravos nas fábricas de Manchester (como aponta Michael Slater, biográfo de Dickens, as chaminés no fundo da ilustração de John Leech das crianças carentes “Ignorance and Want” lembram mais da paisagem industrial de Manchester do que das ruas de Londres). A forma que uma sociedade trata suas crianças, pensava Dickens, é o maior reflexo de sua moralidade. Assim Slater o descreve:
Dickens se debruçou sobre as terríveis cenas que tinha visto entre a população juvenil nas prisões e workhouses em Londres, e enfatizou a necessidade desesperada de educar os pobres. Esta ocasião parece ter colocado em sua mente a idéia de um [conto de Natal] que deveria ajudar a abrir os corações dos prósperos e poderosos para os pobres e impotentes, mas que também deveria trazer de forma central o tema da memória que, como vimos, sempre foi tão fortemente associado ao Natal para ele.
Seis meses após a publicação de A Christmas Carol, a Lei das Fábricas de 1844 decretou que as crianças de 9-13 anos só podiam trabalhar nove horas por dia, seis dias por semana. Para vocês terem noção isto foi considerado como uma reforma humana.
Quem ilustrou o conto foi o famoso artista John Leech, que era o ilustrador principal da grande revista de quadrinhos, Punch, e um amigo muito próximo de Dickens. Uma das ilustrações mais poderosas é a das crianças fatnasmagóricas, apenas chamadas de Ignorance and Want, com quem o Fantasma do Natal-Presente confronta Scrooge. Pouco antes do Espírito ir embora, Scrooge percebe as duas criaturas de aparência esquálida e monstruosa saindo de debaixo das vestes do Fantasma, que então as apresenta a Scrooge como terríveis crianças - animalescas, carrancudas, desesperadas - e Scrooge pergunta, alarmado:
— Espírito, elas são suas?
— São do Homem — disse o Espírito, abaixando os olhos para elas — E elas se agarram a mim, para se queixar dos pais. Esse menino é a Ignorância. A menina é a Carência. Cuidado com os dois, e com toda a espécie deles […].
— Eles não tem nenhum amparo ou refúgio? — exclamou Scrooge.
— Não há prisões? — disse o Espírito, devolvendo-lhe pela última vez suas próprias palavras. — Não há asilos?
Mas que asilos tão terríveis são esses? Bem, em 1834 foi promulgada a Nova Lei dos Pobres, baseada em uma filosofia malthusiana e utilitarista que considerava a pobreza entre os trabalhadores capazes como uma falha moral. A nova lei não proporcionava nenhum auxílio para os pobres fisicamente aptos, exceto o emprego no local de trabalho, com o objetivo de estimular os trabalhadores a buscar emprego regular em vez de “caridade”. Se o indíviduo estivesse em situação de rua, ele e sua família poderiam ser mandados para esses asilos da União (workhouses), e lá seriam separados e receberiam tratamentos absolutamente degradantes, sendo expostos à fome, doenças e maus tratos. Os asilos eram intencionalmente terríveis para que o pobre “tentasse de tudo” antes de ficar “se aproveitando do governo”.
Por mais que a sociedade como um todo tenha avançado muito no aspecto legislativo quanto aos pobres e trabalhadores, essa ideia permanece na cultura e na visão ideológica de muitas pessoas, principalmente as privilegiadas. Exemplo disso são os posicionamentos dos últimos governos federais do Brasil, EUA, Inglaterra, Rússia, dentre outros. A mensagem que Dickens passou através da redenção moral de Scrooge pode ser uma alegoria demodê, mas infelizmente ela ainda é relevante.
Porque Clichês Funcionam?
Pode-se dizer que A Christmas Carol virou um clichê por suas inúmeras reproduções — é o mais filmado dos livros de Dickens, indo desde um musical dos Muppets à comédias românticas do Hallmark Channel — e por sua mensagem moral “óbvia”. Paradoxalmente, parece que essa história ainda não saturou sua audiência. Todos os anos eu vejo pessoas montando clubes do livro para ler e discutir Dickens em dezembro, pessoas escrevendo artigos e posts no tema, reavaliando certos conceitos sobre o autor e o conto em si, além de surgirem novas adaptações no cinema e no streaming.
Clichês possuem sim aspectos positivos, tais como conforto, familiaridade e nostalgia. Acredito que histórias de natal não tem o objetivo de subverter possibilidades e quebrar paradigmas, mas sim despertar o simples prazer de uma expectativa cumprida. Eu pelo menos quando vou ver um filme de natal, espero ver a criança reunida com a família e a Vanessa Hudgens casada com um príncipe, e não roteiros de Goddard. Às vezes pensar dentro da caixa também é bom.
No caso de A Christmas Carol, a mensagem passada mesmo repetitiva ainda é relevante, visto que grande parte dos problemas sociais atacados por Dickens persistem. Os clichés mais duradouros nos conectam à gerações de experiência humana: sua adaptabilidade assegura sua sobrevivência através da facilidade de repassar uma ideia já conhecida mas que não deixa de ser pertinente, tal qual o problema da desigualdade e ganância — tão urgente em 1843 quanto agora. Muitas vezes os próprios clichés são infinitamente mais flexíveis do que seus críticos. Isso não nos poupa da tarefa sem fim de encontrar novas maneiras de captar nossa experiência por meio da linguagem, mas no final das contas, às vezes um mero clichê serve.
O Natal e seus Clichês Adoráveis: Relendo “A Christimas Carol” de Charles Dickens
os clichês também podem ser belos <3