Romance, Religião e Repressão: Compreendendo “Villette” de Charlotte Brontë
católicos e protestantes na guerra do amor narrado por uma inglesa não muito confiável.
Durante minha leitura de Villette, parei em vários momentos para fazer o seguinte questionamento: “será que esse livro é bom ou ruim? que loucura é essa que estou lendo?” mas quanto mais eu refletia e remoía a história (principalmente durante a elaboração desse texto) mais o meu apreço pela obra crescia.
Sinto que nunca compreenderei Charlotte por mais que eu a adore. Existe muito mistério envolvendo seu caráter e não importa qual viés escolhido para observá-la, sempre acho que ela está fadada a ser mal interpretada. Portanto, vou me abster de tentar decifrá-la e focar no livro. No mais, mesmo não tendo a mais vaga ideia de quem era Charlotte Brontë, tenho uma admiração imensa por ela que beira a reverência – o controle completo que ela tem de sua escrita, a forma brutal e lírica que ela expressa as emoções de suas protagonistas, são apenas alguns dos elementos que me fascinam.
Villette é um livro que possui uma arquitetura narrativa bastante complexa, cujas nuances intrigam críticos até hoje. Lucy é uma narradora personagem, contando os eventos décadas depois que eles se passaram, com um porém: ela omite muita coisa deliberadamente. Além disso, o livro possui uma trama tão densa que se eu fosse abordar todos os aspectos esse texto ficaria gigante e vocês iam desistir sem nem ler. Portanto, vou poupar os leitores (e a autora) da tentativa de abordar tudo e focar nos pontos que mais me interessaram, os quais foram elencados no título. Por fim, não posso prosseguir sem algumas menções honrosas quanto aos tópicos que estou deixando de analisar: os arquétipos góticos, a forma narrativa confessional, a representação feminina idealizada (principalmente na figura de Polly), a vigilância de Madame Beck e o passado especulativo de Lucy.
O Quanto de Charlotte há em Lucy?
Em uma carta endereçada à George Henry Lewes em novembro de 1849, de luto por suas duas irmãs e após uma crítica pesada à Shirley, Charlotte disse que “houve momentos em que deixei de me importar com literatura, crítica e fama; quando perdi de vista o que quer que tenha sido proeminente em meus pensamentos na primeira publicação de ‘Jane Eyre’; mas agora quero que estas coisas voltem vividamente”. E voltaram. Em 1853 surgia finalmente Villette, último romance da autora, que de fato possui diversas semelhanças com seu sucesso inaugural, bem como com sua vida pessoal.
Narrado em primeira pessoa, como um livro de memórias, acompanhamos a história de Lucy Snowe, desde breves episódios de sua infância tardia na Inglaterra, sua jornada como professora no instituto de Madame Beck, até o final ambíguo de seu relato na Europa. Os fatos se passam na cidade de Villette em Labassecour, as versões fictícias de Charlotte para Bruxelas e Bélgica.
A escolha do local é o primeiro elemento que provoca conexões biográficas entre a personagem e a autora, pois em 1842, Charlotte e Emily frequentaram um colégio para meninas em Bruxelas, comandado por Madame Claire Heger. Charlotte permaneceu lá por quase 2 anos como estudante e depois como professora, e nesse período surge uma pessoa/personagem de quem falarei muito aqui: Constantin Heger, marido da diretora e professor de retórica e literatura, cuja figura serviu de inspiração para um dos interesses românticos desse livro, Monsieur Paul Emanuel.
Charlotte se apaixonou por Constantin da mesma forma (bem, não temos como saber se foi exatamente da mesma forma) que Lucy se apaixona por Paul. A diferença é que na vida real o amor não foi correspondido, e no livro (spoilers) sim. Na ficção, a diretora é Madame Beck e é prima do Professor ao invés de esposa, porém, Beck e Claire se assemelham ao serem altamente controladoras e tentarem isolar e oprimir a jovem professora.
Em uma carta que Charlotte escreveu para Heger, percebe-se a intensa admiração que ela tinha pelo professor:
[...] houve um tempo em que eu costumava passar dias inteiros, semanas, meses completos escrevendo [...] mas atualmente minha visão é muito fraca para escrever - se eu escrevesse muito ficaria cega. Esta fraqueza de visão é uma privação terrível para mim - sem ela, você sabe o que eu faria Monsieur? Eu escreveria um livro e o dedicaria ao meu mestre literário - o único mestre que eu já tive - a você, Monsieur. Já lhe disse muitas vezes em francês o quanto o respeito... Eu gostaria de lhe dizer uma vez por todas em inglês.
Vale ressaltar que na biografia de Charlotte escrita por sua amiga escritora Elizabeth Gaskell, esses nexos com a vida real, especialmente no que dizia respeito a Heger, foram omitidos com o intuito de preservar a reputação e “bom nome” da autora. Tanto que as cartas de Charlotte escritas para ele só foram publicadas em 1913.
Tantos paralelos entre Lucy e Charlotte realmente não passam despercebidos, porém, eu não acho que isso torna o livro autobiográfico, até porque muitas vezes a interpretação autobiográfica pode ser limitante. Lucy e a história em Villette possuem uma verdade própria, desassociada da autora: é uma obra que se sustenta sozinha, não sendo necessário conhecimento prévio dos eventos que a inspiraram para sua compreensão ou apreciação. Muitas vezes, escritores escrevem sobre aquilo que conhecem ou vivenciaram, mas ao traduzir a vivência em arte, aquilo se transforma em algo novo e original. A fidelidade de Villette ao sofrimento (tem muito e de muitas formas) é a fonte de seu "poder quase sobrenatural", como George Eliot o descreveu, o poder que ele tem de nos perturbar e irritar, nos oprimir e emocionar.
A Dualidade de Lucy Snowe – Representações da Repressão e Paixão Femininas
O sufocamento de Lucy é perceptível durante o livro inteiro. Em vários momentos chega a ser agoniante o quanto ela não pode se expressar. Ao mesmo tempo, ela escolhe não se expressar em determinadas cenas, escondendo seu verdadeiro eu diante de certos personagens, e omitindo para nós o que ela julga não ser da conta do leitor. Por exemplo, ela não nos oferece um retrato de seu passado: ela é órfã mesmo? como isso aconteceu? de onde ela veio? como ela se sustentou durante a infância e adolescência? quem era Lucy antes de Villette?
Normalmente, o autor oferece esse background para gerar empatia e identificação com o personagem, mas Charlotte não nos dá nada: ela entrega Lucy pura e crua, para julgarmos ela apenas pelo presente como se só ele importasse, para que possamos amar (ou não) Lucy simplesmente por quem e como ela é agora.
Queria mostrar este pequeno parágrafo que acho que ilustra perfeitamente a situação de Lucy, como ela se conduz diante dos fatos e como ela conduz a narrativa omitindo seu passado:
Oh minha infância! Eu tinha sentimentos: passiva como vivia, pouco como falava, fria como parecia, quando pensava nos dias passados, eu podia sentir. Sobre o presente, era melhor ser estoica; sobre o futuro - tal futuro como o meu - melhor estar morta. E em catalepsia e em um pavoroso transe, eu cuidadosamente segurava o ritmo veloz da minha natureza. (p.109, oxford)
O único capítulo que temos da infância de Lucy só foi relatado porque os personagens retornam no contexto presente, quais sejam: Dr John, Mrs. Bretton e Polly. De resto, há um pulo temporal para sua juventude enquanto trabalha para uma senhora idosa, apenas porque é a partir desse momento que ela decide ir embora da Inglaterra visto que agora ela não tem mais nada a perder.
É muito interessante acompanhar o raciocínio narrativo de Lucy, pois ela é, paradoxalmente, estoica e agonizante nas suas injustiças — que são inúmeras. Ela é orgulhosa mas se vê como insignificante. Se acha moralmente superior mas ao mesmo tempo reconhece seus defeitos e ignorâncias. E tudo isso a torna incrivelmente complexa e querida.
Terry Eagleton aponta que a relação de Lucy com sua própria cultura é bastante contraditória. Lucy sente intensamente todas as agressões feitas a ela, mas tem muita consciência de sua posição frágil na sociedade como uma mulher solteira, sem família ou conexões, sem patrimônio e sem título (na Inglaterra vitoriana ela é considerada “mulher excedente”), por isso, é vital que ela se comporte de forma “digna” e respeitável, o que no mundo dela significa exibir uma fronte de caráter inabalável, passiva, confiável e austera — reprimindo quaisquer emoções fortes.
Esse comportamento é esperado dela pela sociedade para redimir uma existência inútil, já que ela não é nem esposa, nem mãe, nem filha. Lucy não tem direito a reagir — ela pode até sentir, mas se obriga esconder o que quer que seja, pois o tempo todo o mundo ao redor diz que “não cabe a ela” nenhum dos desejos que ela tem. Essa disparidade entre a Lucy introspectiva e a social é um dos aspectos que formam a dualidade da personagem e da obra em si.
Ela tem um pavor intenso de ser um “fardo” para alguém (existem notas de orgulho nesse medo) e por isso se esforça resignadamente diante das condições mais terríveis e da solidão mais desesperadora, por querer preservar o pouco de independência que é permitido a uma mulher desamparada em 1840, a única coisa que dá a ela um senso de individualidade e de agência nesse contexto.
Charlotte é brilhante ao usar a forma textual em si como forma de representar a personalidade da personagem: Lucy, narrando em primeira pessoa, deliberadamente omite várias informações acerca de si mesma e de seu passado, pois ela não consegue (ou não quer) expressar o ressentimento que há dentro de si, e uma forma de rebelar-se é, segundo Judith Plotz, não dar ao leitor tudo que ele quer saber sobre ela.
Como dito antes, a pessoa que Lucy é internamente e a persona que ela projeta são diferentes. Engraçado que em vários momentos alguns personagens como o Dr John, Ms Fanshawe, M. Paul, Padre Silas e Polly tentam defini-la, e algumas definições são diametralmente opostas, como a de John e a de Paul. O primeiro a infantiliza constantemente e a vê como um objeto que simplesmente está ali e jamais sairá dali pois é inconcebível que ela tenha vontade própria. Já o segundo acusa Lucy de ser vaidosa, de luxúria e de sedução, quando a coitada não fez mais do que colocar um vestido rosa ao invés do cinza diário. São visões extremas, e acho que a verdadeira Lucy vai muito além dessas projeções externas.
Ainda assim, eu diria que Paul realmente consegue enxergá-la melhor, pois ele percebe (as vezes antes dela admitir para si mesma) todos os sentimentos que ela desesperadamente tenta esconder e reprimir no fundo de seu ser. Talvez por isso ela o ame tanto, porque ninguém além dele conseguiu (ou sequer tentou) compreendê-la.
Uma mulher protestante no século XIX era encorajada ao puritanismo e abnegação, e pelo contexto social de Lucy que descrevi anteriormente, ela tem menos liberdade ainda para se expressar e dar voz aos seus desejos, raivas e paixões. Ela simplesmente aguenta tudo até não poder mais, pois se ela reclamar pode ser taxada de ingrata, histérica, e corre o risco de perder a comunidade frágil que construiu ao redor de si. Lucy é solitária, como muitas mulheres em contextos semelhantes, e se agarra as migalhas de afeto que recebe. Ela tem fortes anseios pela comunhão humana, por amizade, família e amor. É o grande motivo para ela se submeter a tudo que se submete.
Romances Questionáveis
Até os últimos capítulos do livro eu estava completamente frustrada com os interesses românticos que Charlotte forneceu para nós. Dr John e Monsieur Paul eram dois opostos detestáveis. Inevitavelmente os comparei com Mr Rochester, e se você leu Jane Eyre e ficou abismado com o comportamento dele, saiba que o senhor de Thornfield Hall é um fofo comparado à Paul Emanuel.
No geral, eu não acho que é possível decifrar totalmente a personalidade de um autor pelo que ele escreve (salvo exceções como Tolstói), mas depois de Jane Eyre e Villette eu só posso achar que Charlotte tinha o pior gosto em homem que se pode imaginar, sendo o completo oposto de Jane Austen. Os interesses românticos desse livro quase não possuem qualidades redentoras, e até na declaração e ato de gentileza final de Paul, eu estava determinada a condená-lo para sempre na minha lista de cancelados. Por fim, se não fosse o final que Charlotte deu a ele, provavelmente eu não o teria perdoado.
Dr. John, por ser gentil com Lucy e oferecer a ela um senso de familiaridade e comunidade, inevitavelmente despertou o afeto da protagonista, mas o meu não. O tempo inteiro ele a trata com um tom notadamente condescendente e paternalista —ele não a enxerga como uma pessoa igual a ele. Exemplo disso é que, quando Lucy está tendo “visões” e febres nervosas ele não a leva a sério, nem vê os problemas dela com afeto e nuance. A própria Lucy diz “ele me contemplou cientificamente à luz de um paciente, e imediatamente exerceu sua habilidade profissional, e gratificou sua benevolência natural, através de um tratamento cordial e atencioso (p. 254, oxford)”. As palavras escolhidas por Charlotte para descrever o tratamento de Dr John frente a uma Lucy que certamente só precisava de carinho e amizade deixam claro que sua atitude era de uma bondade indiferente — ela não era nada além de uma paciente histérica.
Já com Monsieur Paul, a questão é mais complicada. Ele é arrogante, grosso, e muitas vezes assustador — e não do jeito charmoso de Rocherster. O episódio que resume o pior de M. Paul está neste diálogo:
"Eu hesito", disse ele, "hesito logo no início, antes de muitas pessoas chegarem, e quando sua natureza ambiciosa não foi gratificada por um grande público, ou bem no final, quando todos estiverem exaustos, e apenas uma atenção cansada e desgastada estará a seu serviço".
"Como você é duro, monsieur".
"Deve-se ser duro com você. Você é um desses seres que deve ser mantido baixo. Eu te conheço! Eu te conheço! Outras pessoas nesta casa te veem passar, e pensam que uma sombra incolor passou. Quanto a mim, uma vez que te esquadrinhei o rosto, isso foi suficiente". (p.155, oxford)
Só para ficar bem claro, no original ele diz que Lucy “must be kept down”. O ódio que tive nesse momento foi indescritível. Ele repete variações dessa atitude durante o livro, mas considerei esta a pior. Ainda assim (!!), ele consegue ao mesmo tempo oferecer lindos momentos de ternura com Lucy. Nessas horas tive ódio de Charlotte por me fazer perdoar as atitudes monstruosas dele.
Não vou poupar vocês do conflito moral, por isso, segue a cena que quase me fez esquecer tudo que ele fez:
havia algo em seu rosto que não tendia a me acalmar nem a me abater; ele esqueceu sua própria doutrina, ele abandonou seu próprio sistema de repressão quando eu mais desafiei seu exercício. [...] Ele sorriu, traindo o deleite. Cálido, ciumento e altivo, eu não sabia até agora que minha natureza tinha tal estado de espírito; ele me colocou perto de seu coração. Eu estava cheio de defeitos; ele os levou e a mim para casa. Para o momento do maior motim, ele reservou o feitiço profundo da paz. As palavras acariciaram meu ouvido: "Lucy, leva meu amor. Um dia, compartilhe minha vida. Seja minha favorita, a primeira na terra". (p. 491, oxford)
Inicialmente Lucy descreve M. Paul como “monge”, “injurioso”, “taciturno”, e possivelmente “violento e implacável”. As caracterizações posteriores de Lucy continuam semelhantes em terminologia, mas diferem em tom, já que ela observa com humor suas manias e grosserias — ela deixa de levá-lo a sério, sem temer a ele, e é isso que o desarma. A experiência vivida novamente se funde com a representação: ao completar uma tradução francesa “muito ineficiente”, Lucy (como personagem) não pode deixar de sorrir para a reação de M. Paul, e seu tom (como narradora) durante a transmissão deste evento replica esse sorriso, fazendo seu leitor sorrir também.
Desde o início Charlotte dá pistas sobre Paul ser o grande encontro da vida de Lucy, bem como de seu destino final com alusões à tempestades. No capítulo V, quando a protagonista chega a Londres depois de uma árdua jornada, ela escuta as badaladas do sino de uma igreja antes de dormir, e diz “Estou deitada à sombra de Saint Paul”, qual seja, a catedral em Ludgate Hill.
O amor entre Paul e Lucy é construído de forma lenta e gradual (slow burn <3), com muitos altos e baixos, e antes de tudo eles estabelecem uma amizade. Portanto, o romance estruturado por Charlotte é muito convincente, e apesar dos enormes defeitos do par de Lucy, eu me apeguei muito a ele como personagem. A falha de muitos autores de romance modernos é querer antagonizar o interesse romântico apenas para forçar o arquétipo de enemies to lovers, quando no caso de Paul, tudo que ele faz de ruim tem algum contexto, o maior sendo o fato de que ele era um homem católico em 1840.
O companheirismo e confiança trabalhado aos poucos entre o casal é, fora a jornada pessoal de Lucy, o elemento com maior poder emocional e dramático do livro. Mas existe entre eles um obstáculo praticamente intransponível: a diferença religiosa. Lucy é protestante e Paul fervorosamente católico e isto é abordado repetidamente durante a trama, e é o que falaremos no próximo tópico.
Amor versus Religião
(Spoilers Graves à seguir)
Como sempre, existem alguns entendimentos tácitos entre uma obra e o público contemporâneo de sua publicação que não são tão óbvios para nós, leitores do futuro. No caso de Villette, a questão religiosa pode precisar de contextualização para que possamos compreender quão sério é o fato de que Lucy é inglesa e protestante e M. Paul (e todos ao redor dela) são católicos belgas. Villette foi escrito, como aponta Robert Colby, numa época em que os antagonismos religiosos na Inglaterra eram intensos.
Primeiramente, o catolicismo na Inglaterra era praticamente proibido desde a época de Henrique VIII (e até hoje permanece esse sentimento na cultura deles). Quando Villette foi publicado em 1853, só haviam se passado duas décadas desde o Catholic Emancipation Act 1829, o qual permitiu que membros da Igreja Católica no parlamento, medida que foi recebida com muita controvérsia popular. Além disso, o crescente número de deserções do Oxford Movement para Roma e o restabelecimento, em 1850, da hierarquia católica sob a liderança do Cardeal Wiseman produziram uma reação anti-papista proeminente na literatura da época. Contudo, o romance de Charlotte, segundo Rosemary Clark-Beattie, difere distintamente do padrão da ficção anti-católica de meados do século.
A situação de Lucy no início é descrita por Matthew Arnold como um romance em que o sofrimento não encontra nenhum escape na ação; em que um contínuo estado de sofrimento mental é prolongado, não aliviado por esperança ou resistência; em que tudo há de ser suportado, nada a ser feito. Na ausência de um opressor visível, não há ninguém contra quem se rebelar, ninguém em conflito com quem seus sofrimentos possam ser aliviados em ação. O catolicismo, então, fornece um antagonista. A ficção da protestante preservando sua virtude diante da corrupção papista tem muitas semelhanças com The Pilgrim’s Progress, e satisfaz a necessidade de Lucy de um teatro de ação onde sua privação possa parecer excepcional.
A importância deste contexto é a luz que ele lança sobre a viagem de Lucy à Villette. A sociedade católica de La Bassecour tem sido interpretada de diversas maneiras - como símbolo dos sentimentos de Lucy de não ter um lar, como representante do mundo da imaginação que ela luta para controlar, ou mesmo como tendo afinidades com o inconsciente. Nesse aspecto, quero focar na relação dela com M. Paul.
O protestantismo de Lucy encoraja a atitude estoica e de mártir, de “sofrer em silêncio” e, como ela mesmo diz, “levar o sofrimento para o Criador”. Essa ideia não é restrita apenas a ela, mas a sociedade como um todo percebe essa atitude das mulheres “solteironas” como normal e dentro do esperado. Se Lucy expressar o que ela realmente sente, ela corre o risco de ser taxada de histérica ou fraca, e por conta do mínimo de orgulho que ela possui, ela jamais pode demonstrar que foi atingida. Além disso, ela tem teto, comida e um emprego, tudo adquirido pela força do próprio trabalho (coisa muito protestante) então que motivo ela tem para reclamar?
Da mesma forma, ela não se sente permitida para expressar seus sentimentos por Paul, e entra num conflito moral por ele ser católico. Durante boa parte do desenvolvimento do relacionamento deles, eu fiquei pensando como essa questão religiosa entre eles seria resolvida, pois me parece um problema com uma única solução: alguém teria que se converter a fé do outro. Charlotte jamais em tempo algum converteria sua protagonista, ainda mais no contexto mencionado, e ela deixa bem claro o quanto Paul é fervorosamente católico e o compara diversas vezes a um monge. A princípio, são obstáculos intransponíveis, até porque eles não poderiam se casar na igreja.
A solução que Charlotte encontra para o problema moral é atribuir a Lucy uma conclusão lúcida de que, no fim das contas, protestantismo e catolicismo são a mesma religião, só muda a forma, e a forma não importa. Porém, a solução “prática” que me deixou atônita foi insinuar de forma ambígua que Paul morre num naufrágio na última página. Ou seja, eles jamais poderiam ficar juntos, pelo menos não como amantes.
O que me leva a uma frase que me deixou muitíssimo intrigada quando li:
Ele me chamou de “irmã”. Está bem. Sim; Ele pode me chamar do que quiser, desde que ele me tenha como confidente. Eu estava disposta a ser sua irmã, na condição de que ele não me convidasse para assumir essa relação com alguma futura esposa sua; e como ele, tacitamente fiz votos de celibato (p. 409, oxford)
Claramente percebemos que Lucy tem consciência de sua sexualidade e de seu desejo por Paul, e como se ambos fossem ministros da igreja um do outro, permaneceriam num pacto de celibatismo fraterno, se contentando com o amor platônico. Se não podem ter um ao outro então não terão ninguém. Não sei se achei isso bonito, mas me comoveu muito a determinação de Lucy de aceitar qualquer condição — até a de uma relação fraterna — desde que ela possa manter Paul perto dela, um amor altruísta de certa forma, mas desesperado.
Conclusões Ambíguas
A recusa de Lucy em se comprometer com a conclusão da trama (M. Paul volta da América do Sul para casar-se com Lucy no final, ou ele morre em um naufrágio?) é o elemento final que compõe a duplicidade estrutural e temática que perpassa todo o texto. Mesmo supondo que M. Paul não retorna, o final é ao mesmo tempo feliz e não feliz, trágico e não trágico, devido à autossuficiência recém-fundada de Lucy e seu isolamento contínuo. O final é tão duplo quanto o texto que o precede. De acordo com Elizabeth Preston, o eu narrado por Lucy expressa a propensão de uma mulher feminina vitoriana para o luto, mas ao mesmo tempo, ela se apodera de um poder que seu eu experiente só pode exercer às vezes: o poder de reter informações, de se recusar a gratificar a necessidade de fechamento do narrado.
Por mais indignada que eu tenha ficado com esse final, acredito que não poderia ter sido diferente. A escolha de Charlotte de manter um final em aberto trouxe ainda mais realismo para história — muitas vezes a vida não se resolve de forma coerente; o sentimento de incerteza do futuro é uma aflição atemporal e de fácil identificação; as vezes não era pra ser e não podemos mudar o passado; injustiças acontecem com pessoas boas.
Villette possui um lado muito triste pois, toda vez que Lucy está a beira de encontrar a felicidade tudo evapora nas mãos dela, e mais uma vez ela volta ao seu estado de solidão e repressão. Contudo, Charlotte se despede de nós oferecendo uma migalha de esperança: “deixem eles imaginarem a união e uma sucessiva vida feliz”. Pessoalmente, eu escolhi imaginar sim que apesar de tudo, Lucy foi feliz.